Velho Chico:a atual novela das 9 é uma verdadeira obra de arte

Não acompanho nada na televisão há muito tempo, mas confesso que, nas poucas vezes em que assisti à atual novela das 9 da Rede Globo, percebi algo de diferente nesse tal de Velho Chico.
Olhando além da típica narrativa novelística, repetitiva e já saturada há muito tempo, é possível ver uma linda e sensível obra de arte.


Direção de arte e fotografia

Começando pela paisagem natural em si, quase sempre emoldurada pelo velho rio São Francisco, os telespectadores são diariamente presenteados com imagens belíssimas.

Novela Velho Chico
O rio São Francisco em uma das cenas da novela

Toda a exuberância natural do nordeste é potencializada nas mãos do diretor artístico Luiz Fernando Carvalho, que eu nem sabia ser também o responsável pela direção de arte da minissérie Hoje é dia de Maria (2005), mas já tinha associado uma produção à outra por terem linguagens visuais parecidas.

Minissérie Hoje é dia de Maria Rodrigo Santoro Carolina Oliveira
Rodrigo Santoro e Carolina Oliveira em cena de
Hoje é dia de Maria

Rodrigo Santoro (o coronel Afrânio) em cena com a então atriz-mirim revelação Carolina Oliveira. Paleta de cor orgânica, com predomínio de tons terrosos, figurinos bastante trabalhados e originais, resultando em dramaticidade até o último fio de cabelo, foram características marcantes da minissérie.

Outro trabalho recente do diretor que também se destacou pela qualidade estética foi a novela Meu pedacinho de chão, exibida em 2014 no horário das 6. Dessa vez, um mundo encantado e multicolorido tomou conta da tela, sem nenhum compromisso com o realismo. Ainda bem!

Novela Meu pedacinho de chão Bruna Linzmeyer Irandhir Santos
Bruna Linzmeyer e Irandhir Santos em Meu pedacinho de chão



Agora, Luiz Fernando Carvalho leva seu olhar criativo e único para o horário nobre, valorizando as paisagens e cultura nordestinas de tal forma que a riqueza visual de Velho Chico vem se destacando mais do que a própria trama em si.

Novela Velho Chico diretor Luiz Fernando Carvalho
O diretor Luiz Fernando Carvalho orienta a modelo/atriz Marina Nery 

Figurinos

Como parte importante da direção de arte, os figurinos também vêm se destacando. Repetindo a parceria que o diretor fez em Meu pedacinho de chão, eles são assinados pela figurinista Thanara Schönardie.
As peças receberam um trabalho muito bem feito de tingimento e envelhecimento, usando como corante, em alguns casos, a própria terra da região e a exposição ao sol. O resultado são estas peças com a cara do sertão e história impregnada em cada fibra.

Novela Velho Chico Figurino Direção de Arte
Figurinos de alguns personagens das diversas fases da novela

Todo o conjunto do figurino é muito bonito, mas os meus preferidos são os de Maria Tereza, do seu filho, Miguel e seu irmão Martim. O dela manteve uma forte identidade mesmo com duas mudanças de fase, tendo sempre o vermelho como cor de destaque e ficando mais sofisticado neste momento atual vivido por Camila Pitanga. Gosto bastante dessa espécie de corpete sobreposto que a acompanha desde a segunda fase. Passa uma ideia de força e, ao mesmo tempo, uma sensação de aprisionamento. Reflexo da história da personagem, sempre impedida de viver da maneira que deseja.

Novela Velho Chico Maria Tereza Julia Dalavia Camila Pitanga
A evolução do figurino de Maria Tereza

Já o figurino de Martim é marcado por túnicas longas de tecidos rústicos como o linho, sempre sobrepostas a camisas de mesma cor e combinadas com calças de mesmo material. Lembra certos trajes usados pelos árabes. É interessante para reforçar a característica de forasteiro misterioso do personagem.
Novela Velho Chico
O figurino do misterioso e rebelde fotógrafo Martim

O filho de Tereza também se destaca. A cada aparição sua, o agrônomo Miguel dá uma aula de sustentabilidade. E não só pelos seus poéticos discursos de amor e respeito à natureza, mas por suas roupas e calçados, que são um reflexo fiel do estilo de vida sustentável que ele defende.
O personagem costuma usar camisas híbridas, de design moderno e despojado, frequentemente em tons escuros, reforçando sua ligação com a terra. Nos pés, ele carrega o conceito do upcycling, com a originalidade dos calçados reciclados a partir de modelos usados. 

A melhor parte do ofício de figurinista é isso: conseguir materializar no vestuário do personagem a bagagem intelectual e emocional dele, trazendo-a para o mundo concreto e, com a vantagem de se ter muito mais liberdade artística do que na moda comercial.
Novela Velho Chico Miguel Gabriel Leone Figurino
As roupas do jovem idealista Miguel são um reflexo fiel de sua personalidade

Mas, por incrível que pareça, toda esta qualidade estética está jogando contra Velho Chico. Parece que a cenografia e caracterização dos personagens, descomprometidas com a realidade moderna, estão impedindo que as pessoas acreditem que a novela se passa nos dias atuais. Os telespectadores ainda a enxergam como uma novela de época, mesmo após os dois avanços no tempo que a trama fez.

São perceptíveis, realmente, alguns equívocos entre a linguagem visual e a evolução da história. Confesso que levei um susto quando vi, por exemplo, os primeiros smartphones surgirem nesta última fase, pois jurava que eles ainda estavam em algum momento do passado. A partir daí, que fui entender que não.

Há rumores de que a Globo vem pedindo a Luiz Fernando Carvalho que pese menos a mão na direção de arte para não comprometer ainda mais a audiência, que já não anda boa.
Se as alterações previstas surtirão o efeito esperado pela emissora, não dá para saber. Mas, como meu interesse pela novela é apenas estético, estou achando ótimo como está!


Veja também:



Idealismo e engajamento

Velho Chico Irandhir Santos Vereador Bento
O vereador Bento dos Anjos num dos
seus momentos introspectivos
Além do apelo visual, Velho Chico também se destaca pela retórica. Alguns personagens rendem cenas poéticas, como o vereador Bento dos Anjos que, com um discurso marcado por metáforas que visam a despertar a consciência política da população da cidade fictícia de Grotas do São Francisco, extravasa os sentimentos dos brasileiros em relação às desigualdades econômicas do país. Num momento oportuno da vida real diga-se de passagem...

A cena em que ele desabafou ao conversar com a imagem de uma santa, na pequena igreja da cidade, sobre as dificuldades de se levar uma vida honesta no plano terreno e a outra em que ele deu uma aula sobre como identificar a demagogia dos políticos aos companheiros de bar foram icônicas.


Novela Velho Chico Beatriz Dira Paes
A cena em que Beatriz interrompe o discurso do prefeito

Bento forma com Beatriz o casal politizado da trama. A primeira aparição da professora, surgindo do meio do povo durante um comício e interrompendo o discurso do prefeito para cobrar benfeitorias pra comunidade foi marcante.
Pena que, com as alterações previstas, cenas como estas, provavelmente, irão desaparecer da novela.


Transições 

Impossível não mencionar o quanto a trama perdeu em qualidade com a última mudança de fase. 
O Afrânio de Rodrigo Santoro era infinitamente superior ao coronel de agora, com nuances dramáticas e conflitos internos que sumiram completamente na interpretação de Fagundes. Ele está péssimo, parece rosnar o tempo inteiro, é insuportável.  Não sei o que é pior: a performance dele em si ou essa peruca que não convenceu ninguém.

novela Velho Chico Coronel Afrânio Rodrigo Santoro Antonio Fagundes
Há um abismo de distância entre o coronel de Santoro e o de Fagundes.
Definitivamente, não são a mesma pessoa

A primeira fase da novela foi, de forma geral, bem mais rica dramaticamente. Sobretudo por causa do romance entre Afrânio e Iolanda jovens, com aquela pegada de amantes latinos vivendo a Tropicália brasileira.

novela Velho Chico Afrânio Iollanda Rodrigo Santoro Carol Castro
O casal "caliente" Iolanda e Afrânio na primeira fase.
Carol Castro e Rodrigo Santoro estavam perfeitos


Trilha sonora

A seleção musical é outro ponto alto de Velho Chico. Valorizando a brasilidade e, especificamente, o nordeste, o produtor Tim Rescala fez escolhas certeiras. Já na abertura, Tropicália, interpretada por Caetano Veloso em parceria com a Orquestra Sinfônica de Heliópolis especialmente pra novela, nos transporta diretamente pro clima de efervescência cultural dos anos 60.

Bethânia é outro destaque de peso com a passional Meu primeiro amor, que toma conta da cena quando é tocada, e Mortal loucura, tema de Santo e Maria Tereza, que é praticamente uma oração. 

A Serenata de Chico César é pura poesia. E Marisa Monte, com sua delicadeza característica, emplaca mais uma música em trilha de novela, a doce e fofa Da aurora até o luar.

E, finalmente, minha música preferida da trilha: Como 2 e 2. A canção traz a eterna diva da Tropicália, Gal Costa, simplesmente surpreendente e maravilhosa nesta gravação rara.

A beleza artística de Velho Chico é inegável. Mas, uma coisa que sempre me perguntei é se as novelas precisam realmente seguir sempre o mesmo padrão narrativo. Porque, em casos como esse, acaba sendo um desperdício de qualidade técnica para servir sempre à mesma receitinha óbvia do bem contra o mal, do casalzinho que passa a história inteira dando cabeçada para serem "felizes para sempre"  no final...
Jura que não dá para fazer uma coisa diferente?
Ou será que não daria audiência se fosse de outra forma?

Guerra de famílias, segredos que atravessam gerações, amor proibido que o tempo não apaga, mas que qualquer um separa...
Até quando?

Enquanto o jeito de se fazer novelas não evolui, pelo menos desta vez, temos toda a riqueza estética de Velho Chico para apreciar. 
Coisa rara no horário nobre.

*Todas as imagens que ilustram esta postagem foram retiradas do site gshow.globo.com .

Postar um comentário

0 Comentários